A importância da anamnese oncológica na prática clínica

Entenda a anamnese como técnica de diagnóstico e terapia no tratamento do câncer

Entre todos os aparatos técnicos que aumentam o poder de observação do médico, nenhum se aproxima em valor do uso habilidoso das palavras faladas – palavras do médico e palavras do paciente. Em todos os campos da Medicina, o emprego das palavras ainda é a principal técnica de diagnóstico e, na terapia, embora muitos auxílios mecânicos e químicos sejam de fato miraculosos em seus efeitos, as palavras continuam exercendo um papel essencial.1 Etimologicamente, a palavra anamnese se origina do grego "ana = trazer de volta, recordar" e "mnese = memória". Significa "trazer de volta à mente todos os fatos relacionados com a doença e com a pessoa doente".2

A história da Medicina se estende por milênios e, ainda assim, não foi possível estabelecer uma fórmula universal para a anamnese, a obtenção da história clínica do paciente. Inicialmente, a abordagem médica era focada na doença, negligenciando o paciente e seu contexto. Com o progresso da Medicina, a anamnese evoluiu para uma abordagem mais centrada no paciente, tornando o médico um ouvinte atento da narrativa do doente, interrompendo em momentos específicos para a obtenção de detalhes importantes. No entanto, cada paciente é único, exigindo do médico experiência, conhecimento técnico e habilidades para adaptar-se a diferentes situações.3

Desafios na anamnese oncológica: comunicação complexa e sensível

O trecho citado no início do artigo ilustra a importância da anamnese na prática clínica, sendo sua estrutura geral de obtenção da história e o exame físico semelhantes para todos os pacientes, independentemente do diagnóstico. Há, entretanto, distinções importantes na anamnese do paciente com câncer.

 Na “primeira visita” ao oncologista, a comunicação é particularmente complexa e sensível, por pelo menos três razões:

  1.  A necessidade de o paciente e o médico se conhecerem. 
  2. O estado de vulnerabilidade psicológica e emocional do paciente, por saber do diagnóstico do câncer pouco antes da consulta. 
  3. A quantidade de informações que o oncologista tem para entregar ao paciente e a relevância das decisões que ambos devem enfrentar.4

A anamnese oncológica é fundamental, pois fornece ao médico uma visão abrangente do paciente e sua rede de apoio, permitindo uma abordagem individualizada e direcionada ao diagnóstico, tratamento e prognóstico. Além disso, a história clínica é de suma importância para a triagem de risco de câncer em pacientes assintomáticos e para identificar possíveis fatores de risco modificáveis que possam contribuir para o desenvolvimento do câncer.5

Uma investigação minuciosa: aspectos essenciais da anamnese oncológica

Para aumentar a efetividade e o aproveitamento dessa ferramenta tão importante, durante a anamnese, aspectos como antecedentes pessoais e familiares, hábitos de vida, ambiente de trabalho, comportamento sexual, prática de atividade física, alimentação e sintomas devem ser investigados minuciosamente, muitas vezes de forma mais aprofundada que em outras doenças, uma vez que um pequeno detalhe pode orientar a realização de determinado exame complementar adequado, auxiliando no diagnóstico precoce da doença.5

Anamnese oncológica e rastreamento de risco

As informações do histórico familiar em combinação com o histórico pessoal de câncer do paciente permitem que o oncologista levante a hipótese de uma síndrome de suscetibilidade hereditária ao câncer, avalie a necessidade de aconselhamento genético e possível indicação de testes genéticos. Para indivíduos sem câncer, ou com câncer e risco de um segundo tumor primário, o risco pode ser estimado por meio de informações sobre a história familiar, principalmente em parentes de primeiro e segundo grau, como recomenda a Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO, do inglês American Society Of Clinical Oncology). A linhagem materna e paterna deve ser avaliada separadamente, assim como a etnia e ascendência. Para cada caso de câncer, deve ser estabelecida a idade ao diagnóstico e o tipo de câncer primário, pois isso influencia tanto as diretrizes de avaliação de risco genético quanto as recomendações de rastreamento. Anamnese incluindo o histórico familiar de câncer deve ser coletada e avaliada na visita inicial e reavaliada periodicamente, uma vez que nem sempre é possível a abordagem completa nas primeiras visitas, em que há maior estresse e angústia em torno do diagnóstico recente.6

Avaliação dos sintomas e qualidade de vida na anamnese oncológica

Sintomas multidimensionais em pacientes oncológicos

Os pacientes com câncer manifestam uma gama de sintomas, tanto físicos quanto emocionais, psicológicos e espirituais. Os sintomas são uma experiência multidimensional, que inclui a percepção da frequência, intensidade, angústia e significado da sua ocorrência e expressão. Os sintomas podem ser decorrentes diretamente da doença, ou relacionados à própria terapia oncológica. A avaliação dos sintomas constitui um desafio, tanto pelo curso evolutivo do câncer quanto pela complexa relação entre a doença e os sintomas. Cada sintoma em oncologia é um fenômeno dinâmico e, por isso, durante a anamnese, deve ser constantemente reavaliado, para que as intercorrências sejam controladas, oferecendo alívio e conforto ao paciente.7,8

Escalas de avaliação de sintomas e qualidade de vida

Escalas de avaliação de sintomas e qualidade de vida no paciente oncológico são ferramentas amplamente utilizadas em pesquisas e podem auxiliar uma investigação mais acurada durante a anamnese na prática clínica, aumentando o aproveitamento e a efetividade da anamnese. Podem ser aplicadas em momentos distintos durante o tratamento do paciente, permitindo uma avaliação longitudinal das mudanças e colaborando para tomadas de decisões. Alguns exemplos dessas escalas são: EORTC QLQ-C30, EORTC QLQ-BR23, FACT-G, ESAS.9-11 É importante ressaltar que as escalas não substituem a comunicação aberta e empática entre médico e paciente. Elas servem para complementar a compreensão clínica, fornecendo dados objetivos sobre a experiência subjetiva do paciente durante o enfrentamento do câncer, contribuindo para uma abordagem mais completa e humanizada no cuidado oncológico. 

Durante o tratamento oncológico, os pacientes apresentam sintomas relacionados ao próprio tratamento, devendo ser esses sintomas sempre avaliados e quantificados. O Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos publicou definições padronizadas para eventos adversos, conhecidos como Critérios de Terminologia Comum para Eventos Adversos (CTCAE, do inglês Common Terminology Criteria for Adverse Events), também chamados de Critérios Comuns de Toxicidade (CTC, do inglês Common Toxicity Criteria), que são usados mundialmente. Durante a anamnese oncológica, sinais e sintomas relacionados à terapêutica devem ser graduados por meio desses critérios, orientando a manutenção, redução de dose ou suspensão temporária ou definitiva do tratamento.12,13

A importância da abordagem espiritual no cuidado ao paciente com câncer

Na anamnese oncológica, é imprescindível a avaliação da dimensão espiritual no cuidado ao paciente. O câncer traz em seu âmago o adoecimento e a perspectiva da morte, que põem em xeque valores fundamentais de sentido e significado da própria vida.14 O medo da proximidade da morte, devido às concepções comuns associadas ao câncer, causa um impacto significativo em níveis físicos, psicológicos e, especialmente, espirituais. Diversas pesquisas têm destacado a relevância da abordagem espiritual nesses pacientes, uma vez que o ser humano é influenciado por aspectos biopsicossociais e espirituais durante o processo de adoecimento.15

Anamnese oncológica: uma peça-chave no sucesso terapêutico

A efetividade da anamnese oncológica é essencial para o diagnóstico e tratamento adequados do câncer. Isso requer uma abordagem clínica minuciosa e uma comunicação afetiva e honesta entre o médico e o paciente. Estabelecer confiança é fundamental para que o paciente relate precisamente seu histórico e seus sintomas, em todas as esferas. O médico deve estar atualizado em relação a avanços científicos e recomendações de prevenção do câncer para obter informações relevantes. A anamnese bem conduzida permite a identificação precoce do câncer, direcionando os exames complementares e o tratamento, melhorando o prognóstico e aumentando as chances de sucesso terapêutico.

Referências

  1. Bird B. Conversando com o paciente. ARANTES UC, tradutor. Barueri: Manole; 1978.
  2. Soares MOM, Higa E FR, Passos AHR, Ikuno MRM, Bonifácio LA, Mestieri C P, et al. Reflexões contemporâneas sobre anamnese na visão do estudante de medicina. Revista Brasileira de Educação Médica 2014;38:314-22.
  3. de Oliveira JL. Considerações sobre a anamnese. In: de Oliveira JL. O aprendizado da anamnese e sua avaliação no curso de medicina: uma contribuição ao debate”. Mestrado Profissional em Educação e Docência intitulado [acesso em 25 jul 2023]. Disponível em: https://promestre.fae.ufmg.br/wp-content/uploads/2018/11/Considerac%CC%A7o%CC%83es-sobre-a-anamnese.pdf.
  4. Zucchermaglio C, Alby F, Fatigante M. What counts as illness? Anamnesis as a collaborative activity. Testing, Psychometrics, Methodology in Applied Psychology 2016;23(4):471-87.
  5. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). ABC do Câncer. 6ª ed. rev. e atual. [acesso em 25 jul 2023]. Disponível em: www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document/livro_abc_6ed_0.pdf.
  6. Lu KH, Wood ME, Daniels M, Burke C, Ford J, Kauff ND, et al. American Society of Clinical Oncology Expert Statement: Collection and Use of a Cancer Family History for Oncology Providers. Journal of Clinical Oncology 2014;32(8):833-40.
  7. de Menezes JR, Luvisaro BMO, Rodrigues CF, Muzi CD, Guimarães RM. Test-retest reliability of Brazilian version of Memorial Symptom Assessment Scale for assessing symptoms in câncer patients. Einstein 2017;15(2):148-54.
  8. Lavdaniti M. Assessment of Symptoms in Cancer Patients Undergoing Chemotherapy in Northern Greece. Materia Socio Medica 2015;27(4):255.
  9. da Silva IBS, Lima Júnior JRM, Almeida JS, Cutrim DSP, Sardinha AHL. Avaliação da Qualidade de Vida de Pacientes Oncológicos em Cuidados Paliativos. Revista Brasileira de Cancerologia 2020;66(3).
  10. Sawada NO, Nicolussi AC, Okino L, Cardozo FMC, Zago MMF. Avaliação da qualidade de vida de pacientes com câncer submetidos à quimioterapia. Rev Esc Enferm USP 2009;43(3):581-8.
  11. Li B, Mah K, Swami N, Pope A, Hannon B, Lo C, et al. Symptom Assessment in Patients with Advanced Cancer: Are the Most Severe Symptoms the Most Bothersome? Journal of Palliative Medicine 2019;22(10):1252-9.
  12. Protocol Development | CTEP. Cancer.gov. 2017 [acesso em 25 jul 2023]. Disponível em: https://ctep.cancer.gov/protocolDevelopment/electronic_applications/ctc.htm.
  13. Ministério da Saúde. Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas em Oncologia [acesso em 25 jul 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/protocolos_clinicos_diretrizes_terapeuticas_oncologia.pdf.
  14. Cobb M, Puchalski CM, Rumbold BD. Oxford textbook of spirituality in healthcare. Oxford: Oxford University Press; 2014.
  15. Slongo A, Pordeus IMF, de Oliveira LCM, Calado VC, Pordeus MAA. O benefício da espiritualidade no tratamento de pacientes com câncer: uma revisão bibliográfica. Revista Saúde & Ciência Online 2019;8(2):100-9.